Capa do clipe, postado no YouTube.

‘AmarElo’ contém o verso que marca uma década

Johnny Taira
4 min readMay 16, 2020

Uma crítica tardia sobre uma música que será atemporal

Confesso que eu demoro a acompanhar as tendências musicais. Um artista lança um single, que é comentado por semanas nas redes sociais, e eu apenas observo a movimentação da web. Gosto de ouvir as músicas quando sinto que é o momento, mais do que pela curiosidade em saber como é a canção e dar meus pitacos.

No caso de ‘AmarElo’ — a música lançada pelo rapper Emicida — só dei atenção a ela após o lançamento do álbum homônimo. Este, por sinal, me trouxe curiosidade em ouvir logo após a estreia nas plataformas de streaming. Música por música, de cara nutri uma simpatia tremenda pela produção impecável, os arranjos que transcendem as batidas do hip-hop e a confluência de talentosíssimos artistas que contribuíram para a obra, desde Zeca Pagodinho até Fernanda Montenegro, que emprestou sua voz para recitar Ismália.

No álbum, Emicida mostra como ele cresceu musicalmente e se transformou em um artista completo, um dos grandes em sua geração, que é capaz de experimentar diferentes estéticas musicais e entregar também um grandioso projeto gráfico e audiovisual para a divulgação da sua música.

Faixa por faixa, cheguei em ‘AmarElo’. O single que divulgou o álbum. E me arrependi em não ter escutado a música anteriormente. Motivo: a obra foi capaz de condensar, ao longo dos seus minutos, uma série de mensagens para toda uma geração. Em tempos de crescente autoritarismo e da contradição entre a preocupação com a saúde mental e a realidade que esmaga qualquer psicológico, ‘AmarElo’ é uma mensagem positiva, de alento para jovens de diversas origens sociais.

Emicida é quem canta os raps, como um bom rapper que ele é. Se no começo da música o sample de ‘Sujeito de Sorte’ é cantado pela própria voz de Belchior, nos refrões quem interpreta é a cantora Majur. É incrível como ela, não-binária e negra, coloca força nos versos de Belchior. Se meus olhos marejam é porque o ouvido atento sente como ela coloca o coração na sua cantoria.

Já o verso referido no título começa na voz da Pabllo Vittar. Fazendo uma digressão à carreira dela, ouso dizer que foi graças a ela que houve uma explosão de artistas que remetem à estética drag ou que sejam trans, permitindo que não só ela mas Lia Clark, Glória Groove e Linn da Quebrada, dentre outras, pudessem alcançar as primeiras posições nas paradas musicais brasileiras.

Bom, voltando ao verso, cantado por Vittar, Majur e Emicida:

Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes

Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes, que nem devia ‘tá aqui

Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes

Tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nóiz?

Alvos passeando por aí

Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes

Se isso é sobre vivência, me resumir a sobrevivência

É roubar o pouco de bom que vivi

Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes

Achar que essas mazelas me definem, é o pior dos crimes

É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóiz sumir

Por que, no caso deste texto, é importante citar que Majur é negra e não-binária? Ou que Pabllo Vittar é gay e drag queen? Ou que Emicida é negro e tem origens na periferia da Zona Norte de São Paulo?

O verso acima é uma síntese sobre o pertencimento e a representatividade de diversas minorias perante à sociedade. Quando cantam que resumi-los a sobrevivência é roubar o pouco do bom que viveram, os três, em nome de todas as nuances sociais que representam, clamam não só pela sobrevivência ou pelo mínimo de dignidade que é obrigação a qualquer ser humano. Desejam ser vistos como pessoas reais, não apenas como estereótipos. A realidade pesa, mas por que não cantar sobre temas como amor, festa, amizade, sexo, carnaval, dentre tantos outros? Reivindicar o direito a sorrir pode ser tão revolucionário e denunciador quanto expressar as mazelas.

Trata-se do verso que representa uma década de maior consciência social por parte de muitos adolescentes e adultos. Falamos sobre gênero, raça, orientação sexual, representatividade e condição econômica como há tempos não falávamos. Mas a preocupação não significa ainda que o diálogo se transforme em condições igualitárias para as minorias. Inclusive, tal situação causa uma certa ansiedade pois temos mais consciência dos problemas do mundo. E é aí que ‘AmarElo’ demonstra seu gigantismo.

A música contém a voz de três forças que estendem a mão à uma geração de jovens brasileiros. Em tempos de pandemia, tal qual a atual, as cicatrizes da disparidade socioeconômica se abrem e dóem mais. Ouvir ‘AmarElo’, seja no Youtube, ou nas plataformas de streaming, ou até mesmo nas lives, é um chacoalhão que emociona e nos fortalece. Quando se trata desta música, a questão da representatividade é um prisma de múltiplas refrações de luz: ela está em Emicida, na Pabllo Vittar e na Majur. Se eles, por tudo que já passaram, me falam para enxugar minhas lágrimas e levantar a cabeça, por que eu não o faria?

--

--

Johnny Taira

Estudante de Jornalismo. Desenvolvedor. De vez em quando escreve no Medium. Contato: taira.jyundi@gmail.com